domingo, 1 de novembro de 1992

No fim do fim (de semana)

Domingo, oito horas da tarde.
O espectro de uma nova semana de trabalho paira no ar, e envolve-me em sua enorme mão calosa. Tirando-me toda a vontade de fazer seja o que for.
Estirado na cama oiço o tempo passar através do tic-tac do despertador.
Olho com ódio aquele instrumento de tortura, que todas as manhã me lembra que tenho de me levantar precisamente quando estou na melhor parte do sono, aquele demónio parece que adivinha! De manhã é sempre a mesma coisa, esse carrasco desperta-me com a sua voz estridente e os meus primeiros pensamentos são de destruição: estilhaçar aquela coisa contra a parede e saltar em cima dos restos até reduzi-los a pó.
O despertador só ainda não teve este fim trágico porque fica fora do meu alcance. Mas não sei até quando vou aguentar esta situação, ter este amanhecer violento cinco vezes por semana ainda vai ser o meu fim. E amanhã vai começar outra série de cinco, amanhã começa mais uma semana de tra... não, não posso pensar nisso!
Num enorme esforço levanto-me da cama e arrasto-me até à janela, afasto as cortinas. Lá fora a noite cai. A coitada deve-se aleijar, de tantas vezes que cai!
Quedo-me ali, pensamentos levados no vento, olhar perdido no horizonte, (muito limitado devido aos prédios em frente). E não vou, não posso ir mais longe. Ali fico. Queixo apoiado nas mãos, mãos apoiadas na janela, janela apoiada no prédio, prédio apoiado no chão, chão apoiado... no mundo? E o mundo? No universo? Mas afinal o que é isso? Em que consiste? Como é que apareceu? Isso do universo? Do mundo? Da semana de trabalho?... Semana de trabalho! Ah não, outra vez não! Larga-me, larga-me!...

terça-feira, 1 de setembro de 1992

Com licença

– Dá-me licença, se "fachavor"?
Pediu o homem, com um enorme embrulho nos braços, que pelas caretas que fazia, devia ser pesado. O rapazola que, de phones nos ouvidos, lhe impedia a passagem não lhe respondeu. Parecia não ter ouvido, o que não seria para admirar, pois a música estava tão alta que se ouvia à distância, mesmo tendo ele os phones enfiados nas orelhas.
– Oiça, importa-se de me deixar passar?
A voz do homem, desta vez, saiu mais alta, mas o resultado foi o mesmo; nenhuma resposta.
– Queres sair da frente, ou quê??!
A paciência do homem esgotou e a irritação começou, mas de nada adiantou.
O homem já berrava:
– Ó seu cabrão! ‘tás a gozar comigo?!!
A delicadeza desapareceu, mas nem assim o moço lhe respondeu. Continuou encostado à ombreira da porta como se nada fosse com ele. Furioso, suando esforço e cólera, poisou o embrulho, deitou as manápulas aos fios dos phones, e com um sorriso de prazer antecipado: “Eu já te dou o arroz!”, puxou os fios com violência. O que aconteceu a seguir, os seus olhos não queriam acreditar; desmesuradamente abertos iam e vinham das suas mãos à cabeça do rapaz. O sorriso desaparecera dando lugar a um espanto escancarado. Largou os fios dos phones numa repulsa horrorizada e, dando meia volta, fugiu espavorido.
O rapaz encostado à ombreira, assim permaneceu. Os fios dos phones, pendentes do walkman preso à cintura, baloiçavam levemente e nas suas extremidades, quase roçando o chão, estavam as suas orelhas.
A música continuava, tão alta que se ouvia à distância, mesmo tendo ele as orelhas enfiadas nos phones.

sexta-feira, 1 de maio de 1992

Viagem de rotina

A minha era apenas mais uma cara ensonada no meio de tantas outras. Mais ou menos alinhados esperávamos o autocarro. Ele chega e como formigas encaminhamo-nos para a porta. Começamos a entrar, o autocarro enche-se, e continuamos a entrar. É impressionante a quantidade de pessoas que podem entrar num autocarro já cheio!
Entrei na segunda vaga. É claro que lugares sentados havia aos montes, estavam é todos ocupados, até o corredor já estava! Fui avançando às desculpas, espremendo-me por entre os que já se sentiam bem onde estavam, até que deparei com um obstáculo intransponível: o corpanzil de um enorme passageiro com um bigode a condizer. Gorou-se assim a minha tentativa de chegar às traseiras do autocarro. Pois dizia-me a experiência que aí havia sempre mais espaço que à frente. Fiquei ali, entalado, e nem a pasta podia pousar.
Com um solavanco a viagem começou. Minutos decorridos e já começava o pára-arranca do costume. Entretive-me a assistir à tentativa de um bebé ensinar o pai a falar, pelo menos assim me pareceu, pois o homem repetia com extrema atenção tudo o que o pequerrucho dizia.
A pasta começava a cansar-me o braço, e como não dava para pousa-la decidi simplesmente larga-la. A pasta só desceu um bocadinho mas foi o suficiente para aliviar o braço. Nesse momento o autocarro parou para descerem passageiros, com o apertete nem todos os que queriam descer o conseguiram fazer. E quando o motorista fechou a porta e arrancou, os lesados ficaram ligeiramente aborrecidos:
– Hei! Que‚ isto!?
– Pare esta porra!
– Ó chefe, olhe a porta de trás!
– ’Tá cego ou quê?!
– Andam a dormir! Estes motoristas... é sempre a mesma coisa!
O motorista tocado por estes tão delicados pedidos parou e abriu a porta. Mas quando arrancou novamente fê-lo com tal ímpeto, que eu só tive tempo de agarrar na pasta, e fui projectado para trás de encontro ao Bigodes, o tal do corpanzil, que não deve ter achado muita graça ao ocorrido. De facto até me tentou matar, com o olhar. Mas ao fim de alguns minutos eu continuava ali, de pé, e ele acabou por desistir.
Estava a chegar ao meu destino e receava ter problemas com o Bigodes. Ele podia, como represália, impedir-me de sair. Felizmente ele saiu na mesma paragem que eu e até me ajudou pois aproveitei a passagem que ele ia abrindo até à porta.
Cá fora respirei de alívio. Acabou!

sábado, 1 de fevereiro de 1992

Bonito!


Verde. Até onde o olhar chegava, era verde. Um mar de copas verdes estendia-se até‚ ao infinito. E aí unia-se ao azul do céu onde nuvens coloridas de pássaros davam outras cores ao azul celeste.
No interior daquele mar de folhas a vida efervescia num turbilhão de urros, guinchos, chilreios, rosnados e tantos outros nomes que se dão às vozes dos animais. E todos falavam ao mesmo tempo, parecia uma grande feira debaixo daquela massa vegetal.
Uma massa compacta, apenas interrompida por alguns cursos de água. E mesmo aí eram quase cobertos pela vegetação que crescia até aos limites das margens, debruando-se sobre elas como se quisessem passar para a outra banda.
As margens, escurecidas assim pela muralha de plantas, tinham um aspecto sinistro. Assustador mesmo! Dando a sensação que mil olhos hostis nos espiavam.
Então, inesperadamente... tudo fica escuro!
– Bonito! Agora ‚ que havia de faltar a luz! Assim não vou poder ver o resto do filme!

O Custo da vida


Esse monstro pavoroso, que nos faz desesperar, encolerizar, alucinar, e outras coisas acabadas em ar, não afecta a todos. Há uns quantos privilegiados, que por estarem demasiado alto, o monstro não lhes chega. Mas as pobres almas, cá em baixo, têm sempre esse bicho à perna. Muitos, para lhes escapar, tentam subir, mas debalde. Porém, alguns espertalhões, vendo que o balde‚ muito pequeno para chegar lá a cima, usam de artes e manhas, que incluem fazer das pessoas escada, para chegarem ao topo. E alguns conseguem! No entanto uma vez lá em cima, tornam-se num dos grandes, e não ligam puto àqueles que já foram seus iguais, e que não deixam de o ser.
Infelizmente, liga-se muito às alturas. Em baixo a plebe, como erva rasteira onde toda gente grande pisa. E em cima, os privilegiados, como frutos proibidos em suas árvores.
Por vezes acontece este bicharoco subir às árvores causando aí estragos, de tal modo que alguns frutos apodrecem. E quando isso acontece caiem. E onde? Em cima da erva‚ claro. Espalhando aí os seus detritos podres, causando mais problemas, como se os não houvessem já suficientes.
Mas como tristezas não pagam dívidas, e dívidas é coisa que não falta, o “Zé Povinho” vai empobrecendo alegremente. Mas não há-de ser nada.