sábado, 4 de dezembro de 1993

Era uma vez um paraíso

A brisa brincava por entre os ramos verdes das árvores, onde seres alados esvoaçavam enchendo o ar de colorido e melodias.
Em baixo um tapete verde salpicado pelo colorido de pequeninas flores emprestava ao ar um doce perfume, espalhado por uma brisa brincalhona. Este arco-íris perfumado era animado por uma comunidade de animais, que se abrigavam do calor da tarde na sombra amiga das árvores.
Então, como o pronuncio de uma desgraça, um rugido foi aumentando de volume até se tornar ensurdecedor. Eram os homens, com os seus monstros metálicos de garras afiadas e bocas ávidas.
O medo veio, o pânico instalou-se e toda a comunidade fugiu num turbilhão de cores. Só o verde ficou. O verde não podia fugir.
Os monstros escavadores começaram a trabalhar abrindo uma chaga no meio do verde. Em poucas horas o homem destruiu o que levou uma vida a formar-se.
Depois o homem foi embora, o rugido deixou de se ouvir e o silencio que ficou foi de luto.
O verde já não era verde, era cinzento do pó. O tapete mais que usado foi abusado e depois posto de lado. As árvores arrancadas apontavam as raízes expostas como dedos acusadores. A brisa já não brincava, sufocada pela nuvem de pó, andava às cegas pela ferida levantando ainda mais cinzento.
Nos dias seguintes os homens voltaram com camiões cheios de restos. Restos do consumismo da sociedade humana que vertidos para o buraco, depressa taparam a ferida como se de um penso se tratasse. Um penso infectado que rapidamente se tornou putrefacto.
No ar, onde agora só esvoaçava o zumbido irritante dos insectos, o cheiro nauseabundo abafava o perfume das escassas flores resistentes, que choravam pétalas até morrerem completamente.
Os animais não voltaram, procuravam outro lar, outro paraíso. Muitos morreriam, outros talvez conseguissem encontra-lo e aí ficariam. Até que tudo começasse de novo. Até que não restasse mais nenhum lar, mais nenhum paraíso. Ou então, até que os homens começassem a não pensar só em si, mas isso...

terça-feira, 14 de setembro de 1993

Isto não pode continuar assim...

Afundo-me confortavelmente no sofá. Mas, porra!, esqueço-me de ligar a televisão. E o comando encontra-se a uma longínqua distância de um metro, em cima da mesinha à minha frente. Olho para ele. O tempo passa.... e o telecomando fica no mesmo lugar! O sacana quer dar-me luta!
Finjo indiferença e desvio o olhar, que é atraído para baixo da mesinha, onde jazem corpos disformes daquilo que nunca foram considerados seres humanos, nas páginas do jornal deixado ali ao acaso. Até parece um filme de terror. Mas não era nenhum filme, é a crua realidade do chamado “terceiro mundo”, como se a Terra fosse mais que um planeta. É verdadeiramente abominável como permitimos que isto aconteça. Mas isto não pode continuar, é imperativo tomar uma atitude!
E o comando que continua ali! De nada serviu a minha táctica. Definitivamente aquele filho-dum-transistor-queimado quer fazer-me levantar! Desgraçado.
Bem, se a montanha não vem ter com Maomé... tenho que me conformar com as agruras do destino.
Ergo-me, agarro o comando, e deixo-me cair outra vez no sofá. Agora o desgraçado está nas minhas mãos, e a vingança vai ser terrível! Passo-lhe a mão pelas teclas numa carícia maldosa e com um esgar cruel preparo-me para esmagá-lo, quando uma centelha de lucidez atravessa a minha mente enlouquecida: “a violência só gera violência!” Estas sábias palavras ecoam no meu cérebro e fazem-me voltar à realidade. Então raciocino: se dou o merecido castigo a este sacana de pilhas condeno-me a palmilhar o longo caminho até ao televisor. Não, ficamos assim. A violência só gera violência.
Faço pontaria à televisão e com um simples toque no comando dou vida àquela caixa negra.
Mais desgraça! O telejornal está no ar e o ecrã enche-se de cenas de violência:
– Que horror!– é a minha mãe que fala, civilizadamente horrorizada mas sem tirar os olhos do ecrã – Meu Deus porque deixas morrer tantos inocentes!
– Não, mãe, – respondo-lhe eu – não deite a culpa a Deus, onde só o Homem tem culpa, (esta foi linda, heim?! Profunda!).
E a violência continuava. Realmente é inadmissível deixarmos esta situação perpetuar-se infinitamente. É preciso que todos nós façamos parar este horror. E é preciso agora! Já! Num impulso repentino quase que me levanto. Mas uma olhadela ao relógio detém-me. Tão tarde! Bem, também mais dia menos dia não tem importância, faz-se amanhã... amanhã... vou estar muito ocupado, fica para depois... ou para o dia a seguir...

segunda-feira, 30 de agosto de 1993

Na repartição

de papel na mão,
chegou ao balcão
da repartição
a funcionária,
autoritária,
disse-lhe para esperar
e pôs-se a conversar
com a colega do lado
ele esperou um bocado
mas sem resultado
então, com uma careta,
meteu a mão na jaqueta
e retirou, afoito,
a arma preta,
calibre 38
a funcionária seguinte,
amável,
atendeu-o com requinte,
e quando ele pediu rapidez
ela assim fez,
enquanto a mulher da limpeza
esfregava com destreza
o chão molhado
de sangue empastado
de papel na mão,
afastou-se do balcão
da repartição

domingo, 22 de agosto de 1993

Como é chata esta rotina!

...ligamos o botão, da televisão,
e logo nos atiram com bombas-relógio:
"O crescimento populacional, a extinção de espécies,
a diminuição da camada de Ozono"
e por falar em Ozono;
"...o buraco na camada de Ozono da estratosfera
está a preocupar os cientistas e políticos de todo o mundo..."
que bom! eles estão preocupados!
é menos uma preocupação, já temos tantas!
as despesas de casa: o gás, a luz, a água...
"...a maioria dos rios estão poluídos,
alguns são autênticos esgotos ao ar livre..."
...as despesas do carro...
"...a poluição de origem automóvel estão a atingir,
nas grandes cidades, os limites máximos..."
...só chatices!!
e que tal umas férias?
...na praia?
"...esgotos urbanos, detritos industriais, derrames de crude,
e quase tudo o que não presta ou cheira mal é deitado no mar,
fazendo dele a lata do lixo da humanidade..."
...ou no campo?
"...o pulmão do planeta estão a desaparecer a uma velocidade vertiginosa
com os constantes incêndios florestais,
e a sistemática destruição dos espaços verdes..."
...é melhor não,
as despesas...
ficamos em casa, a ver televisão...
e ligamos o botão...

sábado, 3 de abril de 1993

Stress matutino

“Porra, porra, porra! É sempre a mesma coisa, quando uma pessoa se quer despachar aparece um empecilho.” O Silva estava furioso, e não era para menos, queria ir trabalhar e alguém lhe fizera o favor de impedir-lhe a saída do seu carro, estacionando outro à frente.
– É preciso não ter nenhum respeito pelas pessoas... meter aqui o carro aqui de qualquer maneira! Mas isto não fica assim! Hei-de fazer barulho até o gajo aparecer, nem que tenha de acordar meio mundo.
O Silva sentou-se ao volante do seu automóvel disposto a buzinar até quando for preciso. Se o responsável pela sua desgraça não aparecesse pelo menos teria uma grande audiência para se queixar.
Com este propósito na mente ia dar início ao concerto, quando viu um rapazola dirigindo-se na sua direcção de chave na mão. Afinal parecia que já não precisava de acordar meio-mundo. Levantou-se um pouco frustrado, mas depois animou-se pois ia descarregar a sua raiva em cima daquele filho-da-mãe. “Anda meu menino que vais ouvi-las todas juntas. Ai vais, vais.”
Mal o “filho-da-mãe” passou por ele o Silva fê-lo estacar perguntando-lhe num tom de voz que mais parecia um rugido:
– Aquele carro é seu?
– Aquele carro!!?
– Sim. Aquele carro! – “Ainda por cima faz-se de idiota!”
– Não, aquele carro não é meu.
– Não!!?
Não podia ser, era azar demais para um homem só. O Silva não aguentou mais, teve de desabafar:
– Já viu esta porcaria?
– ...
– Como um homem não há-de andar cheio de stress??! Se logo de manhã é sempre a mesma merda!
– ...
– Se uma pessoa vai de transportes públicos é aquilo que se sabe; apertetes, encontrões, e isso sem falar nas greves!...
– Se temos transporte próprio levamos com as bichas, com os condutores-de-fim-de-semana, os condutores-por-correspondência, e toda essa cambada de idiotas capazes das mais incríveis estupideces. Como esta coisa aqui! Cabe na cabeça de alguém estacionar o carro desta maneira!? Estas coisas põem-me doente!
– Também não é preciso ficar assim!
Finalmente o rapaz conseguiu falar, aproveitando uma pausa ligeiramente mais prolongada que o Silva fez, e continuou:
– Se é por causa deste carro, foi só três minutos, eu já ia tirá-lo.
E dizendo isto entrou para o carro e sentou-se ao volante. O Silva ficou atordoado de espanto, estavam a gozar com ele, só podia ser!
O rapaz pôs o carro em funcionamento e só então o Silva despertou do atordoamento:
– Então mas eu não lhe perguntei se o carro era seu??!
– Perguntou.– respondeu o outro calmamente.
– Mas você disse que não era!!
– Pois disse e é verdade – explicou pacientemente o rapaz - o carro é do meu pai.
– Mas??!!...
– O senhor perguntou se este carro era meu, não perguntou se eu tinha a chave!
E arrancou, deixando o Silva a pensar este era um daqueles dias em que não valia a pena uma pessoa se levantar da cama.

terça-feira, 2 de março de 1993

Uma experiência difícil

Ela estava ali diante de mim, à minha espera. Olhei-a demoradamente, era toda minha. Debrucei-me sobre ela e meti mãos à obra. "Vai ser uma maravilha", pensei. E foi! No princípio, mas após o ímpeto inicial comecei a diminuir de velocidade. Aquilo era mais difícil do que eu pensava! Eu bem me esforçava, mas ela era demais para mim! O progresso ia cada vez mais lento. Grossas gotas de suor escorriam por todo o meu corpo, e ela continuava praticamente como no início! Parecia rir-se do meu esforço. Tentei inverter as posições e virei-a ao contrário. Mas qual quê! Por trás ainda era pior!
Desesperado escondi o rosto nas mãos. Tanto entusiasmo, tanta vontade, e agora com ela à minha frente não sabia o que fazer. Assim não conseguia nada, tinha que me dedicar mais.
Inesperadamente ouvi a campainha tocar. Espreitei, quase a medo, por entre os dedos. Ela já ali não estava. Agora nada havia a fazer.
Lá ia ela nas mãos da S'tora. Era mais uma “Ficha de Avaliação Final” com resultado pouco esperançoso.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 1993

Sozinho

Pior que estarmos sozinhos é sentirmo-nos sozinhos, e para nos sentirmos sozinhos não é necessário estarmos sozinhos. Aliás, é bem mais terrível sentirmo-nos sozinhos no meio da multidão!
Quando sentimo-nos sozinhos só nos vem à cabeça pensamentos sombrios, tristes, macabros, ou pior. Mas com uma coisa em comum; tudo tem o condão de nos deixar ainda mais tristes, mais deprimidos. Podem crer que é verdade, não estou a falar da boca para fora; primeiro porque não estou a falar, estou a escrever; segundo porque já vivi essa experiência.
Naquele dia sentia-me completamente sozinho, embora a razão para isso ainda hoje me escape (ela é mais rápida que eu). O meu estado era tal que nem força de vontade tinha de me levantar e premir a tecla do rádio, para assim quebrar o silencio que só estava a piorar a situação.
Deitado na cama olhava o tecto e pensava. Pensava nas coisas que em toda a minha vida não fiz, não faço, e não sei se farei por falta de coragem. Eram muitas. Demasiadas! Comecei a sentir pena de mim próprio, o que me encheu de raiva.
Inesperadamente os meus pensamentos foram devassados pelo zumbido irritante que as moscas tão bem sabem fazer. A mosca pôs-se às voltas no quarto, sempre com aquele som irritante atrás, não deixando ouvir-me a pensar. A cada volta do insecto alado o zumbido aumentava, ou pelo menos era o que a minha irritação me dizia. Essa irritação juntou-se à raiva e transformou-se em ódio.
Então, quando a mosca pousou ao meu alcance não hesitei. Fechei a mão e com o peso de todo o meu ódio, desferi um poderoso golpe sobre o minúsculo insecto. Rejubilei, acertara em cheio! Os restos mortais da mosca jaziam, em pedaços desiguais, na minha mão e na cama. Desfiz-me deles com uma careta de nojo.
E de novo o silencio se fez sentir. Tentei retomar aos meus pensamentos, mas em vão. O silencio era mais pesado, muito mais pesado. Tão pesado que quando se abateu sobre mim transformou-me num hambúrguer psicológico.
Ainda hoje sinto os efeitos dessa terrível experiência, principalmente quando como hambúrgueres.