terça-feira, 14 de setembro de 1993

Isto não pode continuar assim...

Afundo-me confortavelmente no sofá. Mas, porra!, esqueço-me de ligar a televisão. E o comando encontra-se a uma longínqua distância de um metro, em cima da mesinha à minha frente. Olho para ele. O tempo passa.... e o telecomando fica no mesmo lugar! O sacana quer dar-me luta!
Finjo indiferença e desvio o olhar, que é atraído para baixo da mesinha, onde jazem corpos disformes daquilo que nunca foram considerados seres humanos, nas páginas do jornal deixado ali ao acaso. Até parece um filme de terror. Mas não era nenhum filme, é a crua realidade do chamado “terceiro mundo”, como se a Terra fosse mais que um planeta. É verdadeiramente abominável como permitimos que isto aconteça. Mas isto não pode continuar, é imperativo tomar uma atitude!
E o comando que continua ali! De nada serviu a minha táctica. Definitivamente aquele filho-dum-transistor-queimado quer fazer-me levantar! Desgraçado.
Bem, se a montanha não vem ter com Maomé... tenho que me conformar com as agruras do destino.
Ergo-me, agarro o comando, e deixo-me cair outra vez no sofá. Agora o desgraçado está nas minhas mãos, e a vingança vai ser terrível! Passo-lhe a mão pelas teclas numa carícia maldosa e com um esgar cruel preparo-me para esmagá-lo, quando uma centelha de lucidez atravessa a minha mente enlouquecida: “a violência só gera violência!” Estas sábias palavras ecoam no meu cérebro e fazem-me voltar à realidade. Então raciocino: se dou o merecido castigo a este sacana de pilhas condeno-me a palmilhar o longo caminho até ao televisor. Não, ficamos assim. A violência só gera violência.
Faço pontaria à televisão e com um simples toque no comando dou vida àquela caixa negra.
Mais desgraça! O telejornal está no ar e o ecrã enche-se de cenas de violência:
– Que horror!– é a minha mãe que fala, civilizadamente horrorizada mas sem tirar os olhos do ecrã – Meu Deus porque deixas morrer tantos inocentes!
– Não, mãe, – respondo-lhe eu – não deite a culpa a Deus, onde só o Homem tem culpa, (esta foi linda, heim?! Profunda!).
E a violência continuava. Realmente é inadmissível deixarmos esta situação perpetuar-se infinitamente. É preciso que todos nós façamos parar este horror. E é preciso agora! Já! Num impulso repentino quase que me levanto. Mas uma olhadela ao relógio detém-me. Tão tarde! Bem, também mais dia menos dia não tem importância, faz-se amanhã... amanhã... vou estar muito ocupado, fica para depois... ou para o dia a seguir...